Pipoca é uma das minhas coisas favoritas da vida. Poderia comer todos os dias e não enjoaria. Como todos os exageros são ruins, tanto quanto escassez, administro um certo controle e ultimamente tenho feito umas duas vezes por semana. Repito: tranquilamente comeria todos os dias. Prática, bom rendimento, preço acessível e valor afetivo.
Há algumas semanas, levei meu filho para fazer um exame. Ele precisava estar em jejum. Muito naturalmente, segui em jejum junto com ele. Saindo do centro médico, estava com muita pressa devido a demanda com o outro filho (me desdobro para a rotina de um não prejudicar a do outro, ou ao menos mitigar quanto possível), e acabei pegando um lanche rápido só para ele quebrar o jejum que estava o incomodando muito e a bolachinha com café do laboratório não haviam aliviado minimamente. Quando terminou de comer, comentei que estava com dor de cabeça e que deveria ser de não ter me alimentado. Ele se espantou. Contestou por não ter lhe avisado antes e por eu não precisar estar sem comer. Respondi que tudo bem, que eu aguentava esperar chegar em casa, cozinhar e só depois almoçar. Na minha cabeça fazia total sentido, empatia desmedida, abnegação e abstração das minhas próprias necessidades básicas. Ele parou na minha frente, olhando bem nos meus olhos, com as duas mãos segurando o meu rosto e falou: mãe, você precisa parar com isso. Você é um ser humano, sente fome, pode assumir que está com fome. Fala. Solta as palavras. Está em um lugar seguro, comigo, e não com a sua mãe. Fiquei extasiada. Nesse instante o ônibus chegou e caminhamos ao nosso destino.
Já havia conversado com ele sobre a criança negligenciada que fui. Sobre a posição de absoluto silêncio. Sobre o esforço sobre-humano de não incomodar. Sobre a alienação da realidade para sobreviver. Sobre humilhações. Sobre não poder me expressar, sentir, pensar. Até a respiração precisava ser medida. Criança nem era gente. Ao menos a que nem deveria ter nascido.
Minha mãe tem, e sempre teve, distúrbios alimentares. É difícil lidar com isso e é muito difícil estar próximo e não conseguir fazer nada a respeito.
Recentemente uma tia veio me entregar um caminhão de culpa e fiquei muito feliz em ter conseguido, enfim, recusá-lo. Tia, ela é uma mulher adulta, com acesso à informação, à serviço de saúde e discernimento. Eu sou responsável apenas por mim e por minhas crianças.
Minha mãe diz que gosta de cozinhar, mas se esforça muito para não o fazer. Não tem o mínimo de cuidado e posterga o preparo. Não tem zelo. Só faz para si. Não é de cozinhar para ninguém. Faz apenas o básico do básico. Sem refogar, sem tempero. Quando se vê impelida, faz quantidades estupidas que vão ao lixo em seguida. Só sabe uma única maneira, não tem capacidade de adaptações. Como não tem qualidade nas refeições base, come o tempo todo complementos. Tem péssimos horários e come em todos eles. Come porcaria sem controle e a despensa, não sabe o dia de amanhã. Sempre foi assim. Na infância, tínhamos muitas restrições.
Costumo dizer que não gosto de cozinhar. Na verdade, eu gosto. O que não gosto é o todo de antes. É o peso da responsabilidade, quando se importa, de escolhas e hábitos saudáveis. Se fosse só selecionar os ingredientes e preparar, seria maravilhoso. Tem toda a parte de logística. Pensar, planejar, fazer compras, organizá-las, fazer durar até o próximo ciclo, ponderar, diversificar, atender as peculiaridades de todos da casa. Isso tudo faz ser exaustivo e desestimulante.
Eu nunca fiz uma compra de mercado sem me preocupar com dinheiro. Nunca pude colocar no carrinho tudo que gostaria, sem pudor, sem limite, sem consciência.
Quando criança, era totalmente proibida de fazer qualquer pedido. Aquelas idas ao mercado eram um martírio horrível. Precisava me comportar como um robô, obediente, silencioso e sem vida. Com antolhos e cabresto subentendidos. A única vez que tive a ousadia de pedir alguma coisa, foi um churros na entrada. Nem apanhei. Só ouvi o “na volta a gente compra” e na saída não comprou. Passamos direto. Sofri em silêncio e o meu corpinho reagiu. Virando a esquina, vomitei. Tomei uma bronca e em um ato destemido, bradei sobre o churros. Foi a melhor refeição daquela pequena vida de uns cinco sofridos anos.
Só aprendi não passar mais vontade na minha primeira gestação. Se bem que nem era por mim, era para o bebê não passar vontade. Hoje sou paranoica com as refeições das minhas crianças. Todos os meus dissabores da infância procuro não repeti-los com eles. Não dar nenhuma margem para que eles jamais sintam o que senti. Não ter quem fizesse meu café, meu lanchinho, almoço e jantar. Ia para escola cedinho sem comer. Desde sempre, acordava sozinha e me arrumava sozinha. Não comia. Quando sim, o lanche da escola, mas nem sempre. Chegava da escola com muita fome e não tinha almoço. Ela sempre levantou muito tarde, logo, o almoço sempre foi no meio da tarde. Agora por exemplo, meus meninos estudam no período da tarde, então, antes do meio dia a comida já está pronta. Enquanto preparo o almoço, ela está acordando e tomando café. Eles chegam da escola e o jantar está pronto. É bem cansativa essa demanda de cozinha. Não faço sempre comida fresquinha, mas não abro mão de ter o principal sem falta. O lanche sempre acompanha para terem escolha entre ele e o da escola.
Outra coisa que não repito, é de sair sem comer antes. Podemos comer na rua, com tranquilidade, só que desejo que sempre já tenhamos o básico e o que vier, será extra, conforto.
Mãe, tinha costume de passar o dia na casa dos outros, das amigas, parentes. Passávamos muitas horas fora de casa. Não comíamos antes e éramos proibidos de pedir, de reclamar e de aceitar comida. Ela sim, comida de tudo, sem moderação, mas não queria ter filhos fominhas, malcriados, sem educação. Logo, aprendi reprimir e dissociar. Era uma criança muito magrinha. Ela entendia que eu não precisava comer muito. Nunca tinha oportunidade de escolha. A divisão era absurda. Ela sempre gulosa, pega a parte dela, soltava o restante para dividir entre os dois filhos, um menino maior, sem nenhum limite e uma raquitinha. Eu nunca tinha chance. As sobras e farelos… Quem tem irmão sabe com funciona uma divisão bem orientada e supervisionada. Ao Deus dará, se imagina como fica. Tinha um lance adulta, preciso mais, ele é menino, tem que comer direito, você, ah, você nem precisa, nem tem corpo para sustentar.
Lembro quando a gente ia em consulta médica, tinha uma lanchonete no hospital. Era um sonho! Salivava naquela vitrine. Ela sempre pegava um cafezinho e um salgado para ela, mandava meu irmão escolher o salgado e o refrigerante dele e eu, se sobrasse, poderia pedir algo mais barato ou, muitas vezes, dividiria o do meu irmão, o que sempre significava ficar com uns 10% do que ele não queria mais, depois dos dois satisfeitos e eu aguentando até o fim. Ainda tomava bronca por atrasar todo mundo que já tinha comido com a minha enrolação e demora.
A gente tinha um tio que era mais abastado e muito próximo do meu irmão. Nunca escondeu suas preferencia e sempre dava muitos passeios e presentes para ele. Em datas comemorativas costumava dar tickets para ele ir ao mercado comprar seus presentes. As vezes ele falava para lembrar da irmã. Íamos, mãe, irmão e eu no mercado para ele escolher os ovos de páscoa dele. Eu não podia tocar, olhar, nem falar nada. Ele escolhia com toda paciência, dentre os mais atrativos, o de sua escolha. Eu quando muito, ganhava algum ovinho sem marca, sem graça, sem brinde. Ou bombom. Ele comia tudo ao meu lado, uma criança feliz, sadia, normal. Vez ou outra me dava um pedaço. E ambos me obrigavam falar para o tio que tinham dividido tudo, muito obrigada. Isso rotineiro com vários tios e tias.
Meu pai sempre foi muito ausente e não participava da nossa criação. Isso me é complexo já que não tenho mágoas de suas atitudes, mas sim das de quem estava ali. Ele era um grosseirão. Não queria que vivêssemos na casa dos outros. Íamos escondido e tínhamos que mentir caso ele perguntasse. Quando estava em casa, era clima de guerra pois ele discordava de todas as atitudes da minha mãe, dos seus hábitos e horários e das faltas como mãe mesmo ele não sabendo de quase nada que acontecia ali. Eu sentia conforto em sua presença já que seria menos acuada e humilhada pelos demais e sabia o preço seria pago posteriormente quando ele não estivesse presente. Nas refeições ele, vindo de uma família de ótimas cozinheiras, detestava o que ela preparava e deixava muito claro isso, mas ele não sabia utilizar sutilezas e era rotineiro agressões verbais e alguns pratos de comida voando na parede nos dias de mais álcool no sangue. Datas comemorativas me trazem muitas dessas memorias.
Até hoje ela tem o hábito de preparar, sentar e comer. Por mesa, chamar os outros, refeição junto, jamais. Eu sempre o oposto. Primeiro todos os outros, as crianças principalmente. Não me lembro de alguma vez ela ter feito meu prato. Aprender se servir, cortar, utilizar os talheres, nada! Cozinhar, não mesmo! Uma vez, perguntei como saber a quantidade de sal para fritar dois ovos. Ela com toda grosseria, com o retardada de sempre na frase, foi pega de surpresa com meu pai observando. Ele a repreendeu e o ódio dela a mim cresceu. Em um momento raro, ele com gentileza me orientou pensar em cada um por vez, como se fizesse apenas um, coloca uma pitadinha, depois pensa no outro e outra pitadinha. Me vem o contraste agora, me fazia, criança, saber do que nunca fui ensinada, hoje ela não é capaz de fritar dois ovos ao mesmo tempo. Se faz três, faz de um em um. E tantas e tantas outras coisas que a vejo fazendo hoje, como se fosse uma criança inexperiente, me exigia expertise quando a criança era eu. Cada respingo que caia, era xingada e tinha que limpar imediatamente, não podia errar. Hoje ela faz cada coisa que, em todas elas, me lembro dos gritos e humilhações que vivi, e tenho compaixão não revidando como ela merece.
Não podia me mexer, falar, sentir. Não podia existir. E era extremamente rechaçada por ser estranha, esquisitona, calada demais. Retardada era o adjetivo que ela sempre usava. Ela e meu irmão que são infinitamente parecidos. Cumplices. Dele já senti muita raiva que amenizou com o passar dos anos e com a distância. Entendi o lugar dele, suas limitações intelectuais e sentimentais. Recentemente tivemos uma conversa em que eu quase senti acolhimento, mas daí no final eu reconheci a barreira existente e voltei para o meu lugar seguro. Sensação semelhante foi com a minha filha, hoje já adulta, quando em um desabafo, soltei que não aguentava mais ser a única que faz a casa andar, que queria ser como todos que podem descansar e as paredes continuam de pé. Ela respondeu que eu faço drama e que o mundo não gira em torno de mim, que pareço uma adolescente incompreendida. Isso que dá sempre guardar tudo para si e de repente soltar para os ouvidos errados. Não é dali que virá ombro amigo.
Escrevi essas linhas na semana passada depois de passar longos dias sem comer uma pipoquinha enquanto acompanhava meu menino em sua dieta pastosa pós cirúrgica. Trouxe à luz várias dores das minhas profundezas/ traumas alimentares. Essa escrita desabafo me é muito terapêutica. Muitas vezes a escondo por usar a primeira pessoa e ter personagens reais que podem se sentir incomodados. Outro dia li que as pessoas mais velhas acham desrespeitoso quando não as deixamos mais nos desrespeitarem. Enfim. Escrever me faz bem e preciso alimentar esse hábito.