24/12/15

E nesses dias de festas, cá estou, sempre pensativa, sempre solidária aos menos favorecidos. Presentes e muitos deles de pessoas ausentes. Ou nada de todos os lados. Uns com tanta fartura, outros com miséria. Nem falo apenas de bens materiais. Principalmente de falta de paz do lado de dentro.
Da primeira infância a gente não lembra quase nada. Vou contar um pouco do que me lembro da minha até uns dez anos mais ou menos.

Lembro basicamente de viver em um casulo. Me proteger nele. Me esconder.

Lembro de um pai sempre bêbado. Uma mãe sempre chorando e deprimida pelos cantos. Um irmão que vivia camuflado também mas que se divertia me agredindo verbalmente em todas suas horas vagas. Exagerei um pouco, o pai não era sempre bêbado. O dia em que não bebia tinha suas dúzias de ataques epiléticos. Gritava, caia, se debatia, saia de si, depois voltava, voltava ao normal, que era beber. E quando bebia depois do remédio ficava muito mais incontrolável. Tinha dia que era melhor acreditar que estava possuído por forças malignas, outros dias era melhor nem acreditar que existiam forças sobrenaturais nem do mau, nem do bem, porque viver ali parecia que só sendo abandonada pelo universo explicaria.

Todos os dias eram muitas orações para que aquela realidade mudasse. O grande vilão era a pinga. As vezes a cola. Horas trancafiado no banheiro e a gente sentindo por tabela, e depois aguentando a loucura que aquilo causava. Não dava pra ver que era uma cabeça perturbada. Nem podia. A dor cega o discernimento da gente. E uma criança lá tem como saber dessas coisas complexas!? Não né! Nem adulto entende…

A grana escassa, vida sem luxo, quase sem o básico, pegar a migalha e dividir. Apesar de pesado, essa parte era a que menos doía. Doía sim, claro! Não ter o que as pessoas da escola tinham, repetir a mesma roupa todo dia na aula, a mesma pra sair, ficar em casa, ir na missa. O mesmo calçado. Sempre era o que sobrava do irmão. A mochila reciclada nunca com tema de menininha. Os dias pós festas eram pesados. As conversinhas na classe de quantos presentes cada um ganhou, quantos ovos de páscoa, quantos passeios nos fins de semana. Os nossos eram ir buscar o pai caído bêbado em alguma esquina do bairro e torcer pra nenhum colega da classe ver. Mesmo assim viam. O “eu vi seu pai caído bêbado” era recorrente. 

Lembro de desejar o estojo da menina do lado, de não gostar do cabelo curto e da franja torta que minha mãe cortava. De desejar um dia ter dinheiro pra gastar na hora do recreio. E de ser conhecida na escola por “irmã do Etienne”, quase nunca pelo meu nome (sim, esse é o nome do meu irmão, sim ele é mais velho um ano, sim sempre estudamos na mesma escola). Aquela redação de como foram as férias causavam calafrios.

Lembro de quase nunca sair. E quando saia tinha que ser múmia. Não podia fazer bagunça, não podia aceitar nada que oferecessem mesmo que a barriga implorasse, tinha que a mãe autorizar antes. Os filhos dela tinha quem ser exemplo de educação. Eram beliscões e tapas bem dados na boca caso a abrisse. Tinha q ficar sentadinha enquanto ela conversava com as amigas e desabafava o que vivia naquela casa. Eram horas intermináveis. Depois correr pra casa porque quando o dono chegava tinham que estar todos ali. A maioria das vezes mudos. Conversas não. Eu nunca soube conversar. Além da timidez, da introspecção, o que ouvia eram só agressões de um, choro da outra e bullying do outro. Meu irmão sempre foi o queridinho. A mãe nunca fez questão de esconder e ouvia quase diariamente a história das duas filhas que morreram nas gestações, do menininho que veio desejado e da gravidez final não planejada. O irmão amava ressaltar que eu “não devia ter nascido”, que “não servia pra nada”, que “nem abrir a boca eu sabia”, que era um “estovo”, dai por diante. Algumas vezes entrava por um ouvido e saia pelo outro. Muitas entrava, fazia um estrago devastador aqui dentro e se perdia nunca saindo do outro lado. 

Lembro daquela maldita garrafa de cavalinho escondida na cozinha. Da vontade que tinha de jogar pelo ralo enquanto ele não estava. E do pavor que tinha quando tinha que ir no bar comprar mais. O irmão que quase sempre ia mas sobrava também pra mim. Era tenebroso o medo de perder as moedinhas no caminho. Pior ainda era entrar naquele lugar, nem raciocinava, torcia pra aquele momento acabar logo e voltava com ódio daquilo que carregava e sem coragem de tacar no chão. 

Muitas e muitas agressões verbais. Chamava minha mãe de lixo, de inútil, de tudo. Se vangloriava de por dinheiro dentro de casa. Fazia questão de dizer sempre que aquela comida quem comprou foi ele, aquele teto, aquela roupa…

“Quem manda aqui sou eu!” ecoava aos quatro cantos todo o tempo. As noites eram dolorosas também. Dividíamos o mesmo quarto e ouvíamos o que não devia. 

Não podia levantar da cama. Deitava repetindo ate pegar no sono “eu não vou querer fazer xixi”. E quando acordava tinha que esperar a mãe levantar primeiro, nunca cedo. Pode ser que eram minutos mas pareciam horas intermináveis rolando na cama esperando poder sair. 

O que lembro de natais só são coisas pesadas. A vontade de comprar coisinhas novas, vontade de ganhar presente. Qualquer roupa que a gente comprava no ano tinha que guardar e só usar no natal. Lembro de um tênis presente te de uma tia, que coisa mais maravilhosa, devia ser o meu primeiro na vida que eu era primeira dona. Guardei por uns três meses, todo dia ia na caixa olhar querer calçar mas não podia, quando finalmente pude, estava apartado. Doía o pé, tive que usar assim mesmo, não podia perder. A música do Raul “Sapato 37” fazia muito sentido. Por falar em música, meu pai amava ouvir no último volume, os vizinhos piravam. Imagina a gente trancafiada em casa com a música explodindo e um bicho solto querendo nos devorar. Só alegria. 

Vontade de ter ceia como via na tv, nunca fomos próximos da maioria dos familiares, tias, primos. E quem é que queria fazer parte daquela loucura!? Cada qual fazia o que lhe convém, fazer de conta que não enxergam. Ninguém lia nosso pedido de socorro no olhar.  

Vontade de não viver aquele almoço que quase sempre acabava igual. Com ele bêbado, com as agressões, com pratos espatifados no chão, com tigelas de comidas jogadas na parede (aquelas raras, que quase nunca tinha o restante do ano), um louco caído no chão brisado de tudo, a mãe deprimida catando a sujeira, eu e meu irmão apavorados enfiados cada qual em seu casulo. 

O único no mundo que vestiu as mesmas sandálias que eu. Não trocávamos palavras. Nos entendíamos pelos olhares. Um refletia e a dor do outro. E é assim até hoje. Crescemos mas carregamos a bagagem na alma. Sobrevivemos! Tentamos viver mas aquilo ainda grita por dentro. Cicatriza, para de sangrar mas ainda assombra. Agarramos nossos filhos e vivemos um dia de cada vez. Lutamos a todo momento pra sair da casca. E refazemos mentalmente um plano pra esquecer e sobreviver a cada dia. 

E pra não dizer que não tenho lembranças boas, tem uma brincadeira que fazia com meu irmão. Era contar os dias que o pai não bebia. Agradeciamos a Deus no fim do dia. Pedíamos mais um dia a cada manhã. Nunca durou mais que os dedos das mãos pudessem contar. Sempre sobrou dedo. 

Outra hora escrevo das outras fases. Ou fezes. Da na mesma.

Ah, deixa eu vestir a roupa de socializar [Apesar de tudo] Temos que ver sempre o lado bom da vida! 
Feliz natal! 

2 thoughts on “24/12/15

  1. Alinne, foi emocionante o seu desabafo, com suas memórias de dias tão sofridos, com suas dores guardadas… Mas, principalmente, foi sua coragem o que mais me emocionou! Aquela menina que mora dentro de você parece ainda gritar muitas vezes, talvez o grito que não veio na época da meninice, aquele mesmo que vc tanto queria colocar pra fora, mas que o medo não permitia… Gostaria de te mandar um e-mail, se possível, pq admiro de verdade a mulher que hoje fala do que a menina viveu. Sim, querida, vc sobreviveu, cresceu e hoje lida com seus monstros de forma absolutamente corajosa e humana. Existem dores que duram uma vida toda, mas na maior parte do tempo a gente luta pra lidar com elas da melhor maneira possível. Somos apenas de carne e osso; muitas vezes somos medo e mágoa, mas noutras somos coragem e força. Parabéns pelo seu relato, e muito obrigada por dividir com a gente um pouco da sua alma. Que vc tenha muito sucesso, alegria, saúde e paz de espírito. Bjo.

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