{re}olhar

Eu moro na mesma casa, desde que nasci. Na verdade sai um tempo mas depois voltei. Duas vezes. Na real a casa é da família desde que nasci. Meus pais compraram, construíram e se mudaram quando eu nasci.

É uma casa bem simples. Em uma grande metrópole. Só que na periferia. Há contraste de grandiosidade com escassez. No mesmo tempo que estamos do lado de tudo, tudo é muito longe. Ao menos do lado de cá da fronteira invisível e pertinente.

Sabe aquela pessoa que vive no interior bem afastado e sonha um dia conquistar o mundo se mudando para a cidade!? Então. Na cidade também tem isso. É mais fácil desbravar o outro mundo. Não menos dolorido.

Quando se mudaram, a geografia do bairro era bastante diferente, naturalmente. Meus pais acompanharam a chegada de muitos moradores. Do lado esquerdo, já viviam ali uma família que virou como parte da mesma família que nós até hoje. Do lado direito, meu tio irmão do meu pai, na mesma época, no mesmo momento, iniciou sua família ali. Um pouco mais adiante, na casa da frente, veio uma outra vizinha, que junto com sua mãe, também do zero começaram um lar no local.

Um dia desses, como num estalo, me lembrei da minha infância na casa da tia Flaviana. Não que eu não me lembre dela com certa regularidade, mas nesse dia foi mais especial. Não foram só memórias. Foi cheiro. Foi toque. Foi som. Eu visitei o passado por um instante. Nem precisei fechar os olhos. Eu estive lá, mesmo sem ter saído fisicamente de onde estava. Cada detalhe daquela casa. A cozinha impecavelmente arrumada. As panelas brilhando em cima da pia. O ursinho de pelúcia ainda na caixa, em cima do baú da cama. Os interruptor do quarto que era como uma cordinha que vinha direto da lâmpada no meio do teto. O quintal todinho de terra. O barranco, o poço (na verdade dois, um lá em cima, onde tinha um jardinzinho e outro no meio do terreno), o pé de chuchu, o pé de limão, o pé de ameixa. Pé esse que certa vez conteve um acidente quando um caminhão sem freio encontrou o muro. Que susto! Da porta da cozinha, admirei aquela imagem gostosa. Tinha uma escada no meio, um murinho de um metro e meio mais ou menos de um lado, e outro do outro. No fim da escada um portãozinho pequeno. O neguinho, cachorro da casa, quase sempre estava paradinho de guarda no último degrau da escada. Que cena mais linda. Que aconchego! Nem consigo definir o que eu amava mais, se era o sorriso ou a gargalhada daquela matriarca poderosa.

O tio do outro lado, apesar desse ser de sangue como a do outro lado não era, vivia em pé de guerra com meu pai. Os dois extremamente parecidos. Tanto lá como na minha casa, eram pai, mãe, um casal de filhos e muitos problemas com bebida. Não sei ao certo qual é a história por só colher partes indiretamente em brigas. Os dois irmãos compraram juntos um terreno e dividiram. Meu pai inteirou a parte do meu tio. Ambos ergueram a base de suas casas. Meu tio colocou tudo em seu próprio nome nos documentos. Depois disso foi só guerra. Eles discutiam e se agrediam periodicamente. Isso afetou nossa convivência, que tinha tudo para crescermos primos muito chegados. Crescemos muito amados, mas não tão juntos quando gostaríamos. Para ver o lado bom, se outrora estivessem no registro seu nome, chances de perder tudo em uma mesa de bar seriam grandes para meu pai. Um detalhe pequeno que poderia ser resolvido em juízo não fossem dificuldades financeiras, boa vontade e um pouquinho mais de esclarecimento. Algumas décadas depois se resolveu, não com facilidade, felizmente a tempo ainda em vida. Pai e mãe nunca tiveram os nomes registrados, eu e meu irmão ficamos com ônus e bônus.

As duas belezuras da casa da frente sempre me encantaram pela resistência. A mãe criou a filha sozinha. A filha uma mulher incrível. Independente, segura de si, trabalhadora, inteligente. Eu olhava para Leila e queria ser 1/3 do que ela era. Trabalhava, cuidava da mãe, cuidava da casa. Levantou aquelas paredes e zelava por elas. Um capricho! Não dependia de ninguém. Ha pouco tempo se mudaram. Hoje se vê traços de ferrugem no portão, amassado na contenção da garagem, piso trincado na calçada. Detalhes quase insignificantes, não que seja desleixo dos novos moradores. Apenas inexistentes outrora. Hoje quando arrumo um chuveiro, quando monto um armário, quando carrego mil sacolas do mercado, tenho forças plantadas dali. Seus exemplos silenciosos correm nas minhas veias.

Uma década eu observei.
Uma década eu só quis voar.
Uma década sai dali.

Há pouco mais de um ano só me remendei voltando. Vivendo aqui renasci. Hoje reconheço como lar. Agora sinto que meu lugar é aqui. Enfim me sinto em casa. Com minha mãe e meus filhos estamos a pequenos passos conseguindo ajeitar as coisas. Já temos conforto. Já temos menos infiltrações, temos telhado e sem bacias para conter as goteiras. Temos piso no chão. Temos paredes pintadas (a primeira tinta que as predes sentiram foi apenas 18 anos após serem erguidas, quando minha filha nasceu, mais 12 anos e pudemos pintar novamente, que alegria! Cada pontada da tendinite valiam a pena executando essa tarefa). Novinha eu morria de vergonha daquela casa. Um portão muito enferrujado. É abaixo da linha da rua. As paredes muito escuras de mofo. As portas e janelas com vidros quebrados ou sem vidro. O chão vermelho. Os armários vazios… Hoje cada pequena coisinha melhorada é uma conquista gigante. Eu morro de orgulho de cada detalhe. Tem mais um punhado de coisas para conquistarmos mas são meros detalhes.

Essa semana veio um funcionário da Sabesp para verificarmos um problema. No fim da visita ele preenchendo suas burocracias, quantos moradores, quantos banheiros, quantas lavagens de quintal. Depois a pergunta que germinou esse texto. Como você considera sua moradia? Boa, regular ou ruim. Sem hesitar, bradei: É EXCELENTE!

Depois que fui entender tamanha transformação. Aquela casa subestimada, modesta, cheia de coisas pertinentes para ajeitar, de vergonha tornou-se orgulho. E o que realmente mudou não foi ela. Foi eu! Gratidão pode ser um bom resumo. Ou (re)olhar.

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