28/07/19

É fim de mês. Sempre fica mais complicado. A conta bancária vazia. Ainda faltam cinco dias para a fatura do cartão de crédito fechar. Só resta uma única notinha de vinte reais.

No açougue:
– Moço, coloca vinte pra mm de carne moída, por favor.
O açougueiro prepara.
– Deu vinte e um e alguns centavos, pode ser.
– Não, tira um pouquinho porque só tenho vinte certinho.
Ele pegou um punhadinho. O marcador da balança marcou vinte exatamente.
Nossos olhos brilharam e sorriram em uma dança contagiante.
A moça do caixa também sorri com o número e se alegra em não precisar de troco. Ofereceu sacola plástica. Recusei como de costume. Sai com o saquinho de carne, sem mais nada, segurando felizona.
Pensei que se por acaso, minha filha adolescente que esta junto, se sentisse envergonhada. Percebi que não. E me alegrei ainda mais com isso. Infelizmente minha geração demorou para entender sobre sustentabilidade. Felizmente a nova geração vem mais atenta. Estamos muito atrasados, mas há esperança! Meus filhos pequenos são muito conscientes nessa questão.
Puxei na memória que eu desde cedo, mesmo inconscientemente já me preocupava com essas questões. Para o desperdício com o plástico e demais materias de uso único. Tanto que artesanato com reaproveitamento de material sempre foi meu forte, e hoje ainda faço vídeos para compartilhar idéias no youtube.
Já em relação a vergonha, remoi uma coisa que tinha que fazer quando criança. Era “normal” deixar os pequenos irem nas vendinhas sozinhos. Comprar um suco para o almoço, doce ou salgadinho. Eu era muito tímida, ao extremo. Hoje ainda sou mas em um grau menor. Faço muitos exercícios mentais. Meu pai fazia, na maioria das vezes meu irmão, algumas vezes eu, ir buscar pinga no bar. Eu entrava em pânico quando era minha vez. Não existia a opção negar. Ele não falava duas vezes. Tinha que ser imediatamente. Eu não consigo definir o que me era mais pavoroso. Pegar a garrafa. Sair com ela na mão, pela rua. Entrar no bar. Pedir fiado. Voltar com a garrafa cheia. Entregar a garrafa para meu pai. Ainda achava menos pior ele beber em casa do que fora. Ele tinha o costume de voltar bem louco e de longe gritar Lê, Lêra, Lê (de Palmeiras) na rua. Duas quadras e já ouvíamos. O medo paralisante já se instalava. Já sabia o que vinha a seguir. Era como se a alma saísse do corpo e se escondesse em um lugar seguro. Todo dia.
Outro dia, meu vizinho/ amigo/ irmão, comentou como acha bizarro meu medo de faca. Eu não tenho faca em casa. Faca de manteiga. Só. Não consigo pegar em faca. Só de olhar eu me arrepio e volto lá na infância onde meu pai ameaçava seu irmão e a nós também. Era muito assustador. E também um episódio que meu irmão foi pegar um espanador de pó que estava pendurado em um preguinho na parede, e nesse mesmo, tinha uma machadinha. Sim, minha mãe perdurava na parede uma machadinha e um espanador juntos. Era baixinho, no esforço, ambos caíram no chão. A machadinha cortou o dedo do pé e foi um mar de sangue, choro e desespero.
E também não bebo. Nem em festas. Em nenhuma situação. Não sou capaz de encostar nesse – pra mim – veneno. Talvez por medo de achar ali um refúgio e não conseguir nunca sair do vício, como meu pai. Meu primo passou uns dias em casa. Era para eu comprar uma garrafa para ele no mercado. Não tive capacidade. Levei ele comigo. Ele pegou a garrafa. Eu não repudio. Não julgo. Sou conivente.
Outra lembrança que me atormenta é de quando pequena ter que acompanhar minha mãe no telefone público. A gente não tinha em casa. Ela sempre gostou de falar muito ao telefone. Eram fichas, cada ficha valia por três minutos. Ela comprava pacote com dez, o que valia para trinta minutos de conversa. Vários pacotes. Tínhamos que andar muito até a loja que vendia ficha. E depois aguardar ela usar todas suas fichas. Era interminável. Imagine duas crianças tendo que esperar horas quietinhas, sentadinhas no chão, sem nenhum entretenimento. Detesto falar ao telefone. Trauma! Hoje mesmo minha tia disse que elas falam muito pelo telefone porque se identificam, que cada uma ouve as mágoas da outra diariamente para se apoiarem. Eu não tenho irmãs. Pode ser por isso que não compreendo.
Em lembranças duras, ainda tem a agonia que era ter que limpar vidros. Imagino que tinha uns quinhentos. Não fazer bem feito era sinônimo de ter que fazer de novo. Hoje eu não limpo vidros nem que me paguem. O chão, vermelhão, era encerado semanalmente. Eu tinha que dar brilho no pé. Era um ódio sem fim. A casa parecia gigante. E lavar roupas. Tenho alergia ao sabão em pó, isso pouco importava, tinha que esfregar as meias no tanque, as bolhas nos pulsos eram frescura. Hoje só compro meia escura! Mas nada se comparava a raiva que era ter que puxar a água da laje. Se chovia cinco vezes no dia, tinha que ir cinco vezes. Não podia esperar parar de chover definitivo. Precisava fazer o serviço que odiava e ter que ver ele ser em vão com a próxima chuva que vinha em alguns minutos.
E ir na feira ou mercado, não poder pedir nada e voltar com sacolas pesadas. Nunca tivemos carro, sempre na caminhada. O mercado grande que tinha, precisava atravessar um riozinho, em uma ponte de madeira, toda mau feita, sem apoio de mão, com pedaços caindo, balançando. Com as sacolas de compras. Um medo descomunal. Não podia chorar, nem reclamar, nem enrolar. Literalmente era segura nas mãos de Deus, e vai. A feira ia pouco, era luxo. Lembro de quando ia na casa dos tios, via as fruteiras repletas, meus olhos brilhavam. Desejava tanto ter a mesma oportunidade, que quem tem, mau consegue dar valor. Hoje, apesar de ser bem cansativo, eu amo ir na feira. Não o ato de ir na feira, sim ter as coisas da feira em casa regularmente. Procuro não levar as crianças, e quando levo, o máximo que carregam são sacolas de saladas.
A maternagem é uma viagem muito louca, que você não faz ideia se está fazendo as coisas certas. Não sabe quais consequências terão a curto e principalmente a longo prazo. É roleta russa o tempo todo! A gente se esforça para fazer o melhor e não sabe como os filhos vão reagir, como atingirá suas vidas, quais marcas ficarão registradas. É preciso equalizar. Pensar bastante nos objetivos. Neutralizar as paranóias. E o mais importante: confiar no seu instinto! Me pego duvidando de mim rotineiramente e me medico com doses cavalares de auto ajuda. Eu faço o meu melhor! Eu me esforço! Eu me prometo largar a mão de ser trouxa. Eu não consigo devolver na mesma moeda. Porque as minhas ações são o que eu sou e eu consigo sobreviver a ferimentos mas não consigo viver tendo ferido. Meu travesseiro é meu guia! Nos últimos meses, depois de uma briguinha por dinheiro, meu ex tem me criticado constantemente. Passamos meses e meses com ele regozijando. Quando consegui que se fizesse o combinado anteriormente, ele quer tirar a minha paz. Preciso multiplicar a batalha interna anti sabotamento.
Chegando na casa da minha tia, ela falou: Alinne sempre com um livro na mão. Se não tiver um livrinho nem é Alinne. E eu gostei. Achei bacana essa imagem. Gostaria de que essa fosse uma registrada na memória dos meus filhos. Também com questões de sustentabilidade. E com nossas conversas quase que diárias sobre sermos uma equipe, sobre respeito, ajuda, senso coletivo. Com a minha mais velha errei muito mais. Com os pequenos, me esforço em dobro. Estou sempre tentando melhorar. Converso olho no olho. Ouço seus argumentos. Tento ser justa. Respeito suas vontades. Os convido a opinar para tomar decisões sobre coisas que envolvem a todos. Perco a paciência muitas vezes. Peço desculpas. Eu fui criada totalmente sem diálogo. Nunca me sentia “gente”. Nunca ouvi: desculpa, por favor, obrigado. Criticas sim. Sempre. E luto para não repetir o que me doía com os meus tesouros.
Viver dá um trabalho lascado!

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