Aqui onde moro tem várias opções de transporte público. Muita gente, muita demanda, muita lonjura. A gente chama carinhosamente, o que atende a linha de ônibus, de lotação. É na verdade um microônibus. A que me serve com melhor custo beneficio, tem o ponto final próximo de casa. Pego rotineiramente dois pontos depois, que é o mais próximo. As vezes quando preciso ir até o final, sofro ja por antecipação. Logo quando dobra a primeira esquina, eu morro um pouquinho naquela curta. É uma sensação inexplicável pela razão mas vou tentar explicar mesmo assim. Se é que tem como. A lotação sai do ponto final, em velocidade baixa, numa subidinha, vira a esquerda. Só isso. Mas quando ela vira, ah, quando ela vira. Imperceptível para todos. Pavoroso para mim. Me dá um revertério que bagunça tudinho do lado de dentro. Os órgãos saem todos do lugar. O estômago sai pela boca, o intestino escapa você imagine por onde e a pressão do topo da cabeça despenca para o pé. São apenas alguns segundos mas que na minha percepção rastejam em câmera lenta. Já tentei ignorar de várias formas. Fechando os olhos, aumentando a música no último volume, fingindo que não me importo, conversando com desconhecidos (se você não é introspectivo não imagina o peso desse ato), respirando diafragmamente, prendendo a respiração, puxando uma pelinha da unha e até chutando um ferro para ver se concentrando a emoção na dor física, a tal da viradinha passasse despercebida. Nada! Tudo em vão! Nunca antes na história, consegui superar o revertério que meu corpo sentia naquela maldita puladinha da lotação. Na primeira vez lembro que senti muito medo de a perua tombar. Eu acho que foi esse susto que desencadeou esse meu trauma.
Um determinado dia minha filha notou meu semblante desfalecendo na viradinha da lotação. Perguntou se eu estava passando mau. Resolvi contar do meu problema. Tive zero acolhimento. E o riso agravou meu sofrimento naquele meu momento relevante.
Quando o deboche vem de qualquer pessoa, é fácil relevar porque pouco importa. Quem nunca calçou os seus sapatos não valem as dores das bolhas dos seus calos. O que dói mesmo é quando vem de quem você ama, de quem você tem apreço, carinho, admiração. Dói quando vem de quem você teve coragem de mostrar seus calçados surrados, os cantinhos que te apertam, as dobras que te fazem sangrar os calos. A gente cria casca dura é para se proteger! Guardar nossas vulnerabilidades em um lugar seguro. Quando enfim consegue abrir uma frestinha na porta para liberar um arzinho puro para respirar, além de taparem a passagem ainda obstruem com mais três camadas novas.
Nessa linha tem um motorista muito bonzinho. Trabalha ali ha muitos anos. Uns vinte pelo menos. Ele é simpático, de poucas palavras, mas de gestos gentis. Diminui a velocidade quando percebe alguém se apressando para chegar no ponto. Espera pacientemente para partir quando entra pessoas com mobilidade reduzida. Dirige com cautela. Educado e sorridente.
Dia desses passei pela curvinha e nem pude acreditar quando notei que não sofri. Não teve nenhum efeito. Não senti absolutamente nada. Era esse motorista quem estava. Foi ele o santo do meu milagre! Eric nem deve saber da minha existência e mesmo assim faz diferença nos meus dias cinzas. É necessária sua existência e necessária minha gratidão por seu serviço quase que invisível, de formiguinha e de valiosa nobreza.